quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Working paper (algumas notas ocasionais apenas...)
Outro com letra grande: o nosso Interlocutor em última (e primeira...) instância e... uma breve referência ao modo capitalista de funcionamento
por
Vítor Oliveira Jorge
(Instituto de História Contemporânea – IHC – FCSH- UNL)
Quando vamos ao facebook, este (a máquina automática montada por esta multinacional) pergunta-nos, a nós, seus trabalhadores gratuitos e voluntários (isto, obviamente, até lembra a antiga questão filosófico-política da “servidão voluntária”...): “EM QUE ESTÁS A PENSAR ?”
E nós respondemos, de algum modo, fazendo um postagem, uma publicação, de qualquer coisa. Muitas pessoas fazem citações, outras remetem-se ao silêncio, deixando neste caso pressupor que “criaram uma conta” no facebook, entre outras coisas, mais para observarem os outros, do que para se exprimirem.
Mas o silêncio é também uma forma de ação, claro; e há além disso várias modalidades, que vão desde pôr ali coisas “só para o prque r isso Lacan elizusivamente filospetentes do que eu; a, por um Grande Outro completamente histamente o burocriva, desmesuradóprio se divertir” (a atitude blasée de quem finge não ligar muito a àquilo...) até criar lojas online ali, para publicitar um negócio qualquer, ou eventos culturais e científicos, que proliferam.
A QUEM ESTAMOS DE FACTO A RESPONDER?
A essa coisa abstracta chamada facebook, que nos aparece como uma simples ferramenta de comunicação? Aos nossos “amigos” de lá, muitos dos quais nem conhecemos bem, ou nem mesmo nunca vimos? Que resposta é essa, nesta sociedade em que somos obrigados a dar-nos a ver como espetáculo, a expormo-nos naquilo que se pode considerar “identidades encenadas”... porque, obviamente, escolhemos pôr ali certas coisas, que até podem ser muito pessoais (retratos de família, imagens ou recordações da nossa infância, desabafos, etc., etc.) mas são sempre produto de uma escolha (há muita matéria que em princípio não iríamos publicitar ali, estaria deslocado ou levantaria problemas de vária ordem, a começar pela censura que a máquina nos faz ( se eu publicar uma imagem da Vénus de Milo é capaz de ter uma séries de likes, se eu publicar uma boa fotografia erótica contemporânea pode haver uma mentalidade puritana que imediatamente faz queixa e eu tenho de a tirar para o facebook não me bloquear, etc., etc.- todos sabemos bem isso).
Respondendo à minha pergunta acima:
ESTAMOS A RESPONDER ÀQUILO A QUE LACAN CHAMARIA O GRANDE OUTRO (grand Autre) POR OPOSIÇÃO AO SEU PEQUENO OUTRO (petit autre, ou objeto pequeno a).
Que é esse Outro com letra maiúscula? Isso daria, e tem dado, para longos trabalhos... certamente por pessoas muito mais competentes do que eu; mas simplifiquemos aqui, nesta breve nota.
Como explica por exemplo Jean-Pierre Cléro no seu “Dictionnaire Lacan” (Paris, Ellipses, 2008, pp. 41 e segs) nós costumamos – na nossa tradição de pensamento, inclusivamente filosófico - distinguir o outro empírico, com que contactamos todos os dias, do Outro como abstração que em si mesma contém todos esses outros particulares. Tudo o que fazemos, expõe o autor (para nos fazer entender o pensamento de Lacan) pressupõe em última análise esse Outro último, por assim dizer.
“O Outro – escreve ele, Cléro – é o outro essencial, a alteridade do outro, o conjunto dos modos estruturais pelos quais entramos em contacto, recusamos o contacto, nos cremos em contacto ou sem contacto, com outrem.” (p. 42)
O Outro é portanto a outridade, no seu sentido mais geral. O que dá sentido e sustenta a ordem simbólica que nos permite viver. Como diria S. Zizek, sob a cama do amor em que o casal se junta está sempre o Grande Outro, que murmura, que permite a fantasia que transforma o ato algo desgostante da copulação em ato amoroso, satisfatório, eventualmente feliz; que permite desde logo que a cópula se consuma, que ocorra o desejo.
Por isso no encontro de duas pessoas (que é também, como a psicanálise nos explica, sempre um des-encontro; isso que Lacan resumiu na célebre proposição segundo a qual “não existe relação sexual”...) está sempre presente, pelo menos, uma terceira entidade: o Grande Outro. O erotismo (e de uma maneira geral todos os atos, desde os mais banais, até aos mais “importantes” para nós, aqueles em que investimos mais) só é possível com a fantasia de estarmos a “representar” para uma terceira figura, um lugar simbólico, ou posição, que é esse Outro.
ORA É A ESSE GRANDE OUTRO QUE TAMBÉM RESPONDEMOS ALI NO FACEBOOK, claro. É para ele que vamos ali (mais ou menos pressurosamente) encenar identidade(s).
Mais adiante, acrescenta aquele autor (Cléro) : “O grande Outro” e o “pequeno outro” estão em relação dialética contínua: nenhuma das posições pode estabilizar-se, uma vez que o outro dá uma garantia existencial frágil relativamente ao Outro, embora nenhum outro seja jamais suficiente para encarnar o Outro, única “verdadeira” referência dos nossos afectos, das nossas ações, dos nossos juízos.” (op. cit, pp. 42-43).
Quer dizer que, para que qualquer outro empírico nos interesse, desperte a nossa atenção, e mesmo eventualmente nos seduza, alguma coisa (indefinível, claro, estamos aqui ao nível do inconsciente) tem nele que reportar para o tal Outro, para essa posição simbólica (fictícia, evidentemente, mas suporte da própria ficção que é a realidade em que nos movemos – a realidade tem a estrutura de ficção, como Lacan nos ensinou) “última” e “primeira”... ora, isto é muito interessante, entre outros aspectos porque se pode conectar com a questão da ideologia. E assim permitir passar do nível radicalmente individual em que a psicanálise (pelo menos a lacaniana) tendencialmente e desejavelmente se move, para o âmbito da esfera política. Superar uma psicanálise apolítica e ahistórica é capital, para que ela (a psicanálise) tenha um verdadeiro valor no âmbito que excede a clínica, para ser fonte inspiradora do pensamento crítico. Isto parece óbvio.
Que é a ideologia, tal como começou a ser magnificamente teorizada desde Marx?... não um conjunto de ideias, por certo, ou mesmo um conjunto de crenças ou convicções que possamos objectivar facilmente, olhar de fora, e até alterar... dito de uma maneira muito singela, a ideologia é o cimento fictício (mas totalmente invasivo e eficaz, porque não atua, não se posiciona, ao nível consciente, mas sim do inconsciente) que sustenta a sociedade, mesmo a mais absurda, ou detestável, como a hitleriana, a estalinista, ou a neoliberal burguesa.
A ideologia é o que define o contorno último do horizonte das pessoas, o próprio ar que respiram, aquilo que lhes surge como absolutamente evidente e inquestionável, o que se não discute, mesmo que se aceite ter aspectos particulares discutíveis. A ideologia suporta-se no Grande Outro, não em qualquer outridade menor. Quando se toca, ou “ofende”, a ideologia de qualquer pessoa, aquela em que ela está imersa (e todos estamos, de um modo ou de outro, imersos hoje na ideologia consumista, por exemplo, que é um conjunto de ações e de habitus no sentido de Bourdieu, mas também de noções naturalizadas e portanto jamais questionadas), a pessoa muitas vezes reage de uma forma que nos parece excessiva, desmesurada. Essa desmesura é sintomática (sintoma, ideia importante que como sabemos Lacan complexificou de modo muito pertinente) de que algo de outro nessa pessoa beliscou o seu Grande Outro de referência, poder-se-ia dizer, um pouco toscamente (porque estas coisas são muito mais complexas, é claro...).
Veja-se por exemplo a ideologia burocrática, que é uma das facetas principais da dominação do Estado (e desses pequenos Estados que são as regiões, onde elas existem, ou as autarquias, etc.), nomeadamente do neoliberalismo hoje dominante.
A maior parte das pessoas passa a vida, nos regimes burocráticos, de um ponto de vista substantivo, a FAZER NADA, isto é, a preencher papelada (ou formulários no computador), ofícios, despachos, respostas a demandas de outrem, nomeadamente de chefes, preenchimento de questionários, programas, avaliações, enfim, uma parafernália interminável e enlouquecedora de rituais que NÃO PRODUZEM NADA e servem apenas como máquina que já só se justifica a si mesma, e permite a existência/ocupação de lugares de “trabalho”, a distribuição de poderes, a ocupação de tempos, um factor essencial para a docilização dos sujeitos, verdadeiramente assujeitados à falta de Tempo para pensar.
Essa é uma das formas da alienação contemporânea, tão bem representada nas obras de Kafka, por exemplo: o próprio absurdo elevado à categoria de razão e de princípio de organização, que em última análise tem uma função de domínio, de dominação, de assujeitamento.
É uma organização e economia suave (um modo de oprimir sem violência física) de subjugação de sujeitos, tornados servos de uma máquina sem sentido. O que se poderia articular com questões caras à problemática do biopoder e da filosofia política, para a qual autores como Foucault deram um contributo fundamental e bem conhecido. O poder alienante, nomeadamente o burocrático, não se exerce apenas a grandes níveis do aparelho de Estado: funciona na gestão corrente dos pequenos poderes, dos poderes difusos e subtis, de inclusão e exclusão, de favorecimento de uns em detrimento de outros, etc., etc.
Todos sabemos isso: mas não apenas - como às vezes pensamos - uma perversão do aparelho: não, essa “perversão” é o seu próprio núcleo e modo de ser, a sua própria estrutura, máquina de funcionamento de reprodução das desigualdades, da disfunção contemporânea, do enlouquecimento de muitas pessoas, tonadas de frustração ou depressão resultante, em última análise, da sua inserção obrigada nestes esquemas repressivos quase invisíveis, tornados habituais, tornados naturais pela ideologia, por um Grande Outro completamente histórico e “fabricado” pelo modo de produção capitalista. Para este tema é muito interessante o pensamento de Béatrice Hibou (veja-se por exemplo “La Bureaucratisation du Monde à l’Ère Néolibérale”, Paris, La Découverte, 2012).
Este tema é certamente muito caro aos meus colegas professores universitários e investigadores ainda no ativo, vitimados por toda uma máquina de avaliação que sobre eles se abateu, enquanto que a sua vocação seria em princípio absolutamente a oposta, ou seja, trabalhar com os estudantes para produzir conhecimento, no sentido mais amplo do termo, e não papelada (e por vezes, coitados, desdobrarem-se na produção de trabalhos para publicar em revista indexadas, que são a garantia da sua avaliação e portanto do seu posto de trabalho muito mais precário do que dantes...).
Enfim, tudo isto representa, como Bernard Stiegler tem repetidamente afirmado, um processo de embrutecimento, de desenvolvimento da bêtise, nas nossas sociedades, quando estas dispõem agora da tecnologia necessária e disponível para permitir a muito mais pessoas cultivarem-se e pesquisarem – isso não lhes é possível porque a burocracia lhes “come” literalmente o tempo, factor fundamental de liberdade, de felicidade, sem as quais nenhum saber verdadeiramente digno do ser humano se cria.
É claro que este embrutecimento geral da sociedade burocrática se relaciona com formas de autoritarismo antidemocrático (mesmo no sentido da democracia burguesa tradicional) que estão já a ter expressão em muitos países e potências e países ao mais alto nível do aparelho de Estado.
E corremos o evidente risco de se propagarem, ao ponto de nos perguntarmos, em relaçnos chegam veiculadas oelos media, propagarem, ao onal,rificou de modo muito importante) nte histamente o burocriva, desmesuradão a notícias que nos chegam veiculadas pelos media, se estamos a assistir à realidade habitual ou a algo que é do domínio do paródico ou do terrorífico (duas faces às vezes da mesma moeda, como Chaplin tão bem encenou no seu maravilhoso filme sobre Hitler, “The Great Ditactor”, de 1940).
A falta atual de um espaço público que possa funcionar como “Grande Outro”, ou “Outro” com letra maiúscula, a mercantilização das soluções religiosas (que se desdobram em múltiplas seitas, por vezes com grande poder económico, atuando como verdadeiras multinacionais) e o achatamento de hierarquias justas, baseadas no mérito, numa perspectiva horizontal (pseudodemocrática, e populista, que leva à banalização do saber sustentado, à obsessão pela opinião desinformada, à degradação da aprendizagem, ao desinteresse dos jovens), a de que “somos todos iguais” quando se facto na prática aumentam as desigualdades de forma nunca vista – tudo isso é, entre muitos outros aspetos, a razão de ser do facebook se ter tornado uma das maiores empresas do mundo.
Loures, fevereiro de 2017

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